terça-feira, 23 de julho de 2013

Em rede, podemos mais que os governos

O modelo de organização pela colaboração, como o que estimulou os protestos no Brasil, ataca problemas cada vez mais complexos. O consultor Don Tapscott quer incentivá-lo.

Um dos pensadores mais produtivos sobre o potencial das redes - o consultor e professor de administração canadense Don Tapscott defende que a internet não muda o que aprendemos, mas o modo como aprendemos. Nesta entrevista concedida à Revista Época (nº 791,22/07/2013, p 68-70), afirma que a era da colaboração, da inteligência conectada, exige outros modelos de educação, de democracia, de gestão e de liderança.

O trabalho em rede contraria em quase tudo o que a maioria de nós faz no trabalho, no dia a dia. Nas redes, não há rigidez na hierarquia, nem nas obrigações nem nas recompensas. Mesmo assim, o efeito multiplicador e quase imprevisível dessas entidades produz resultados notáveis. Grupos de indivíduos interessados e organizados conseguem criar softwares de alta qualidade, abastecer de fundos empresas novatas que tenham bons projetos e resolver desafios tecnológicos propostos publicamente por grandes companhias. Nos negócios e na solução de problemas tecnológicos, as redes já provaram seu valor. Terão o mesmo efeito diante de problemas sociais e políticos, bem mais complexos?

Em um de seus projetos mais ambiciosos, no momento, chamado Redes de Soluções Globais, Tapscott busca entender e incentivar as redes - principalmente aquelas criadas para enfrentar problemas aparentemente insolúveis. Nos trabalhos preliminares, Tapscott e seus colaboradores identificaram nove tipos de organizações e 12 formas como os governos podem envolver os cidadãos nas decisões.

ÉPOCA - Estamos acostumados com trabalho colaborativo para cumprir objetivos técnicos bem definidos, como criar software livre ou a Wikipédia. O senhor vê potencial em áreas mais complexas.
Don Tapscott - O velho modelo de instituições é da era industrial - comando e controle, um modelo de produção em que uma cúpula distribui ordens padronizadas para receptores passivos. Agora, a colaboração vem se difundindo por todos os tipos de instituições. Na política, o modelo atual é "se você votou em mim, eu mando", e combinamos repetir a consulta novamente depois de uns tantos anos. Eu, o vencedor, presto a você o serviço de governar, e você, como cidadão, enquanto isso, fica inerte. Isso já é melhor que modelos anteriores, não democráticos. Mas, hoje, podemos evoluir para um modelo melhor, colaborativo, em que o cidadão se envolve o tempo todo. Para mim, esse é o segundo passo da democracia. O primeiro foi criar instituições representativas. Podemos construir agora um modelo colaborativo, baseado numa cultura de deliberação pública e cidadania ativa. Continua sendo uma democracia representativa, mas transformada pela colaboração.

ÉPOCA - Na política, como isso poderia ocorrer na prática?
Tapscott - Por exemplo, a presidente Dilma (Rousseff) poderia conduzir uma série de desafios, como concursos, pedindo aos cidadãos brasileiros e a públicos diversos, mais específicos, para apresentar propostas sobre como lidar com as mudanças climáticas ou como melhorar o mercado de trabalho. A indústria de software no Brasil poderia ser desafiada a criar aplicativos que contribuíssem com a redução da emissão de gases poluentes. Quem propõe a melhor ideia? Um desafio assim é apenas uma de 12 diferentes técnicas colaborativas que um governo pode usar para engajar os cidadãos. Ela poderia também fazer uma sessão digital de três dias de apresentação de ideias, umbrainstorm, sobre como melhorar o sistema de transporte público, como reduzir o crime ou a corrupção. Os cidadãos poderiam cocriar documentos de política pública, num modelo como a Wikipédia. Ou grupos representativos poderiam ser chamados para discutir tópicos específicos. É um modelo de democracia bem diferente do que temos atualmente.

ÉPOCA - Mas o governo brasileiro não sofre de falta de boas sugestões da sociedade civil. Imagino que outros governos também não. O problema não é como levar os governos a agir?
Tapscott - Por enquanto, muitos governos não estão conscientes dessas redes ou trabalham contra elas. Isso é um erro. Os governos deveriam abraçá-las como uma nova forma de resolver problemas. Nem todas as redes precisam de governos para ser bem-sucedidas. Considere o ecossistema que administra a internet. Não há governos nacionais envolvidos, e o sistema funciona que é uma beleza. Outro tipo de sistema que funciona bem (sem governo) são as redes de conhecimento, como Galaxy Zoo, Wikipédia, TED ou Academia Khan. Muitas das redes, para resolver problemas globais, realmente precisam dos governos. A implementação de algumas soluções exige uma vastidão de recursos e poder, e os governos têm o monopólio das Forças Armadas e da cobrança de impostos. Muitas redes terão de aprender como envolver os governos e levá-los a agir adequadamente.

ÉPOCA - O senhor fez uma classificação das redes existentes. Qual o tipo mais importante atualmente?
Tapscott - Essa lista olha para um tipo de problema: os problemas globais - e como resolvê-los. Muita gente questiona a inadequação dos modelos atuais para consertar o mundo, porque não conseguimos nos acertar em temas como o sistema financeiro global, a Palestina, a pobreza e as mudanças climáticas. Hoje, a abordagem para lidar com essas questões é baseada em Estados nações. Eles atuam por meio da diplomacia ou por instituições multilaterais, como Nações Unidas, Banco Mundial ou G20. Frequentemente, os interesses nacionais se sobrepõem aos desafios globais. Agora, para enfrentar essas questões, muitos interessados podem participar- governos, cidadãos, empresas privadas, academia, fundações, organizados em redes. Constatamos nove tipos de redes de soluções globais. Nenhuma é mais importante ou melhor que as outras. São diferentes. Há redes de pressão social, como o movimento Occupy Wall Street e os organizadores dos protestos recentes no Brasil. Há também redes de conhecimento, operacionais, políticas, fiscalizadoras, de padrões, de governança, de instituições e plataformas. Essa classificação é abrangente o bastante para incluir qualquer rede, mas não quer dizer que uma rede caiba em apenas uma categoria. Há centenas de milhares de redes já em funcionamento que não dependem de um governo. A internet é um bom caso. Ela é administrada por um ecossistema de múltiplos interessados. Redes desse tipo estão mudando a maneira como lidamos com problemas globais. Em nosso estudo, nos concentramos nas redes com quatro características em comum: diversidade de participantes, entre governos, organismos multilaterais, empresas, ONGs e indivíduos; participantes de mais de um país; uso de tecnologia de comunicação; e a meta de melhorar o mundo. Incluo essa última característica porque o formato de rede pode ser usado tão facilmente para o mal quanto para o bem.

ÉPOCA - Que problemas as redes já atacam? O senhor tem exemplos?
Tapscott - O mais incrível é que elas lidam com todo tipo de problema imaginável. Pode ser pobreza, violência sexual, mudanças climáticas, doenças, habitação. A rede Democracia Digital (DD) apoia comunidades que vivem em regimes repressivos ou em transição. Já atuaram em mais de 20 países e organizaram um sistema de combate à violência contra mulheres no Haiti. A Força Tarefa de Prontidão (em inglês, Standby Task Force) usa produção colaborativa (crowdsourcing) e mapas digitais para apoiar o socorro em desastres de grandes proporções, como terremotos. O Instituto Capitalismo Consciente defende a responsabilidade social nas empresas. Há milhões de pessoas envolvidas, já provocando mudanças sociais e políticas.

ÉPOCA - O senhor já abordou em livro as diferenças entre gerações ao trabalhar de forma colaborativa: os mais jovens estão mais habituados a isso. Que consequências dessas diferenças ainda veremos?

Tapscott - Os mais novos usam a tecnologia de forma diferente. São a primeira geração realmente global. Minha geração cresceu como recebedora passiva do conteúdo da televisão. Os mais novos crescem interagindo e colaborando. Aprendem de forma diferente, e isso torna inadequado nosso modelo educacional. Eles se engajam como cidadãos de forma diferente, e isso torna nosso modelo de democracia também inadequado. Eles trabalham de forma distinta, querem colaborar e se relacionar com todos de igual para igual, e isso significa que nosso modelo de administração e de ambiente de trabalho está errado. Há uma nova cultura de comportamento em sociedade. Os jovens se organizam sem precisar de organizações e já mostram o poder de novos tipos de redes, possíveis graças a novas tecnologias. A Primavera Árabe mostrou uma nova abordagem na busca por paz e estabilidade no Oriente Médio. Os jovens querem emprego, justiça e democracia. Para conseguir isso, reescreverão as regras do progresso.

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