O modelo de
organização pela colaboração, como o que estimulou os protestos no Brasil,
ataca problemas cada vez mais complexos. O consultor Don Tapscott quer
incentivá-lo.
Um dos pensadores mais produtivos
sobre o potencial das redes - o consultor e professor de administração
canadense Don Tapscott defende que a internet não muda o que aprendemos, mas o modo como
aprendemos. Nesta entrevista concedida à Revista Época (nº 791,22/07/2013, p
68-70), afirma que a era da colaboração, da inteligência conectada, exige
outros modelos de educação, de democracia, de gestão e de liderança.
O trabalho em rede contraria em
quase tudo o que a maioria de nós faz no trabalho, no dia a dia. Nas redes, não
há rigidez na hierarquia, nem nas obrigações nem nas recompensas. Mesmo assim,
o efeito multiplicador e quase imprevisível dessas entidades produz resultados
notáveis. Grupos de indivíduos interessados e organizados conseguem criar
softwares de alta qualidade, abastecer de fundos empresas novatas que tenham
bons projetos e resolver desafios tecnológicos propostos publicamente por
grandes companhias. Nos negócios e na solução de problemas tecnológicos, as
redes já provaram seu valor. Terão o mesmo efeito diante de problemas sociais e
políticos, bem mais complexos?
Em um de seus projetos mais
ambiciosos, no momento, chamado Redes de Soluções Globais, Tapscott busca entender
e incentivar as redes - principalmente aquelas criadas para enfrentar problemas
aparentemente insolúveis. Nos trabalhos preliminares, Tapscott e seus
colaboradores identificaram nove tipos de organizações e 12 formas como os governos
podem envolver os cidadãos nas decisões.
ÉPOCA - Estamos acostumados com trabalho colaborativo para cumprir
objetivos técnicos bem definidos, como criar software livre ou a Wikipédia. O
senhor vê potencial em áreas mais complexas.
Don Tapscott - O velho modelo de instituições é da era industrial -
comando e controle, um modelo de produção em que uma cúpula distribui ordens
padronizadas para receptores passivos. Agora, a colaboração vem se difundindo
por todos os tipos de instituições. Na política, o modelo atual é "se você
votou em mim, eu mando", e combinamos repetir a consulta novamente depois
de uns tantos anos. Eu, o vencedor, presto a você o serviço de governar, e você,
como cidadão, enquanto isso, fica inerte. Isso já é melhor que modelos anteriores,
não democráticos. Mas, hoje, podemos evoluir para um modelo melhor,
colaborativo, em que o cidadão se envolve o tempo todo. Para mim, esse é o
segundo passo da democracia. O primeiro foi criar instituições representativas.
Podemos construir agora um modelo colaborativo, baseado numa cultura de
deliberação pública e cidadania ativa. Continua sendo uma democracia
representativa, mas transformada pela colaboração.
ÉPOCA - Na política, como isso poderia ocorrer na prática?
Tapscott - Por exemplo, a presidente Dilma (Rousseff) poderia
conduzir uma série de desafios, como concursos, pedindo aos cidadãos
brasileiros e a públicos diversos, mais específicos, para apresentar propostas
sobre como lidar com as mudanças climáticas ou como melhorar o mercado de trabalho.
A indústria de software no Brasil poderia ser desafiada a criar aplicativos que
contribuíssem com a redução da emissão de gases poluentes. Quem propõe a melhor
ideia? Um desafio assim é apenas uma de 12 diferentes técnicas colaborativas
que um governo pode usar para engajar os cidadãos. Ela poderia também fazer uma
sessão digital de três dias de apresentação de ideias, umbrainstorm, sobre como
melhorar o sistema de transporte público, como reduzir o crime ou a corrupção.
Os cidadãos poderiam cocriar documentos de política pública, num modelo como a
Wikipédia. Ou grupos representativos poderiam ser chamados para discutir
tópicos específicos. É um modelo de democracia bem diferente do que temos
atualmente.
ÉPOCA - Mas o governo brasileiro não sofre de falta de boas
sugestões da sociedade civil. Imagino que outros governos também não. O
problema não é como levar os governos a agir?
Tapscott - Por enquanto, muitos governos não estão conscientes
dessas redes ou trabalham contra elas. Isso é um erro. Os governos deveriam
abraçá-las como uma nova forma de resolver problemas. Nem todas as redes
precisam de governos para ser bem-sucedidas. Considere o ecossistema que
administra a internet. Não há governos nacionais envolvidos, e o sistema
funciona que é uma beleza. Outro tipo de sistema que funciona bem (sem governo)
são as redes de conhecimento, como Galaxy Zoo, Wikipédia, TED ou Academia Khan.
Muitas das redes, para resolver problemas globais, realmente precisam dos
governos. A implementação de algumas soluções exige uma vastidão de recursos e
poder, e os governos têm o monopólio das Forças Armadas e da cobrança de
impostos. Muitas redes terão de aprender como envolver os governos e levá-los a
agir adequadamente.
ÉPOCA - O senhor fez uma classificação das redes existentes. Qual o
tipo mais importante atualmente?
Tapscott - Essa lista olha para um tipo de problema: os problemas
globais - e como resolvê-los. Muita gente questiona a inadequação dos modelos
atuais para consertar o mundo, porque não conseguimos nos acertar em temas como
o sistema financeiro global, a Palestina, a pobreza e as mudanças climáticas.
Hoje, a abordagem para lidar com essas questões é baseada em Estados nações.
Eles atuam por meio da diplomacia ou por instituições multilaterais, como Nações
Unidas, Banco Mundial ou G20. Frequentemente, os interesses nacionais se
sobrepõem aos desafios globais. Agora, para enfrentar essas questões, muitos
interessados podem participar- governos, cidadãos, empresas privadas, academia,
fundações, organizados em redes. Constatamos nove tipos de redes de soluções
globais. Nenhuma é mais importante ou melhor que as outras. São diferentes. Há
redes de pressão social, como o movimento Occupy Wall Street e os organizadores
dos protestos recentes no Brasil. Há também redes de conhecimento,
operacionais, políticas, fiscalizadoras, de padrões, de governança, de
instituições e plataformas. Essa classificação é abrangente o bastante para
incluir qualquer rede, mas não quer dizer que uma rede caiba em apenas uma
categoria. Há centenas de milhares de redes já em funcionamento que não
dependem de um governo. A internet é um bom caso. Ela é administrada por um
ecossistema de múltiplos interessados. Redes desse tipo estão mudando a maneira
como lidamos com problemas globais. Em nosso estudo, nos concentramos nas redes
com quatro características em comum: diversidade de participantes, entre
governos, organismos multilaterais, empresas, ONGs e indivíduos; participantes
de mais de um país; uso de tecnologia de comunicação; e a meta de melhorar o
mundo. Incluo essa última característica porque o formato de rede pode ser
usado tão facilmente para o mal quanto para o bem.
ÉPOCA - Que problemas as redes já atacam? O senhor tem exemplos?
Tapscott - O mais incrível é que elas lidam com todo tipo de
problema imaginável. Pode ser pobreza, violência sexual, mudanças climáticas,
doenças, habitação. A rede Democracia Digital (DD) apoia comunidades que vivem
em regimes repressivos ou em transição. Já atuaram em mais de 20 países e
organizaram um sistema de combate à violência contra mulheres no Haiti. A Força
Tarefa de Prontidão (em inglês, Standby Task Force) usa produção colaborativa
(crowdsourcing) e mapas digitais para apoiar o socorro em desastres de grandes
proporções, como terremotos. O Instituto Capitalismo Consciente defende a
responsabilidade social nas empresas. Há milhões de pessoas envolvidas, já
provocando mudanças sociais e políticas.
ÉPOCA - O senhor já abordou em livro as diferenças entre gerações
ao trabalhar de forma colaborativa: os mais jovens estão mais habituados a
isso. Que consequências dessas diferenças ainda veremos?
Tapscott - Os mais novos usam a tecnologia de forma diferente. São
a primeira geração realmente global. Minha geração cresceu como recebedora
passiva do conteúdo da televisão. Os mais novos crescem interagindo e
colaborando. Aprendem de forma diferente, e isso torna inadequado nosso modelo
educacional. Eles se engajam como cidadãos de forma diferente, e isso torna
nosso modelo de democracia também inadequado. Eles trabalham de forma distinta,
querem colaborar e se relacionar com todos de igual para igual, e isso
significa que nosso modelo de administração e de ambiente de trabalho está
errado. Há uma nova cultura de comportamento em sociedade. Os jovens se
organizam sem precisar de organizações e já mostram o poder de novos tipos de
redes, possíveis graças a novas tecnologias. A Primavera Árabe mostrou uma nova
abordagem na busca por paz e estabilidade no Oriente Médio. Os jovens querem
emprego, justiça e democracia. Para conseguir isso, reescreverão as regras do
progresso.
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